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Antologia Carmesim I - O biscoito da sorte

O projeto Amarelo Carmesim foi convidado para escrever contos no Vale. Há, no mundo das trevas, uma nuance sutil entre poder e maldição, entre ser abençoado pela escuridão e ser arrastado nela. Assim, escreveremos por um ponto de vista não imortal e não poderoso. Nosso foco será nos seres humanos que acabam se deparando com as grandes ondas deste mar de escuridão e, invariavelmente, têm suas existências modificadas ou obliteradas.

Em nosso primeiro conto curto, conheça Beni e sua história com o ...





Biscoito da sorte

O lar é sempre o porto seguro das almas cansadas. O apartamento de Beni sempre fora sua cápsula de segurança. Entre aquelas paredes, passou a primeira noite com Amaly e também foi lugar onde, seis anos depois, comemoraram a gravidez dela. O noivado e morar juntos, a ascensão no trabalho da administradora e a vida de casal eram memórias felizes, que, como um café quente, tiravam o cansaço dos dias nublados e traziam alívio.

Mas o calor negro do café dera lugar ao âmbar intenso do whisky. Os sussurros noturnos e risadas deram lugar a um gargalhar rouco, quase emudecido por lágrimas.

Agora as paredes do apartamento estavam nuas e as fotos do casal, incluindo a última dele beijando a barriga de sete meses de Amaly, residiam em alguma parte do depósito municipal de lixo. Descobrir-se estéril em um exame de rotina era a comprovação de uma traição. A briga, as lágrimas dela gritando inocência, as agressões verbais que fizeram algum dos vizinhos chamar a polícia.

O racismo no olhar dos policiais. O nojo na face da vizinha, afinal ele, o monstro do 305, expulsara a mulher grávida e, conforme boatos, a agredira fisicamente. “Notícias correm rápido como cavalos selvagens”, sua mãe sempre dizia. Em menos de uma semana a empresa o demitiu. A administradora não queria vincular sua marca com um homem que agredia mulheres e estava tendo sua reputação destruída na internet. Amaly nunca poderia explicar a verdade. Mesmo furioso, cego de raiva, não a tocou. Mas o carro sim, ao sair do prédio fora atropelada. Óbito. Confusão. Não foi ao velório. Agora se misturava ao ódio um pouco de culpa. Culpa por contar sobre a traição para ex-sogra que perdera a única filha e neto em único ato.

O copo vazio na mão, entretanto com a mente cheia. Caído no banheiro, garrafa com um resto de um whisky barato ao lado, ainda lembrava do início do fim de sua vida perfeita. A loja de artigos orientais. Ouvia a gargalhada rouca, mas não sabia se vinha de sua garganta ou das paredes. Nos primeiros dias de ruína, bebera o estoque da casa. Agora só saia do lar despedaçado para comprar mais alívio engarrafado.

Sua memória sempre insistia no momento em que visitaram a loja do velho oriental para comprar chás para a sogra, um presente de aniversário. Dois meses antes de entrar naquela espelunca, sua vida era feliz. Era noite, sorrisos, teatro mais tarde. Eram o casal mais feliz. Na loja, após as compras, ganharam um brinde. O maldito brinde era um biscoito da sorte. O dela dizia que "nem todos eram escolhidos para algumas bênçãos". O dele era mais fatídico: "A estrela brilhante se apagará após queimar e residirá eternamente esquecida no céu negro." O velho oriental, dono da loja, sorria. Sorria nos pesadelos de Beni. Sorria, todas as noites dentro de seu quarto, escondido nas sombras.

Ficou dias pensando na frase, as coisas iam bem, mas havia um temor, algo sorrateiro. Às vezes, podia jurar, via o velho oriental que lhe dera o maldito biscoito o observando quando voltava para casa à noite. Nunca fora de se impressionar. Agora, observava os cacos do espelho espalhados pelo chão do banheiro. Alguns refletiam o nada, outros refletiam o sangue que escorria de seu punho. Socar espelhos não era calmante como nos filmes. Doía e a dor fazia tudo ficar pior. Pior.

O biscoito não tinha gosto bom, as frases eram um destino de merda. Beni não conseguia chorar, talvez a bebida fosse como um tampão capaz de estancar lágrimas. O sangue fluía devagar, não o mataria. Nada fazia sentido. Não se mataria, tinha certeza.

Viu Amaly, pálida, nua com hematomas e partes do corpo retorcidas. Ela o observava de dentro da banheira que já os abrigara em várias noites de calor e umidade. Agora abrigava algo que deveria ser o fantasma da ex e que abria a boca para falar, mas daquela boca inchada não saiam palavras, jorrava uma bile negra. O choro da criança que não nascera o deixava tonto. A bebida o deixava tonto. A dor o conduzia e o sangue continuava fluindo para fora de seu corpo como formigas avermelhadas que traçavam caminhos sinuosos no piso do banheiro.

O celular não parava de sinalizar a entrada de menções. Na rede social, era o alvo de todo tipo de mensagem de censura e ódio (Morra! Morra! Se mate! Seu porco infeliz! Assassino sujo!). Ria, ou ouvia risadas, não sabia mais a diferença. Tinha até medo de pensar, mas sabia ter sorte ainda, sorte de os pais terem morrido no acidente no início do mês. Assim não passariam vergonha por Beni. Beni queria morrer e queria viver. Mas sabia que, se vivesse, sua existência seria uma miséria sem fim. Expulsara a traidora e o acidente aconteceu, testemunhas do prédio ouviram a briga. Será que a agredira e não lembrava?

A dor aumentava conforme pegava cada pedaço do espelho e cravava no próprio rosto. O ébano de sua pele cortado pelas trilhas carmesins. As lascas refletindo o banheiro e os rostos de seus fantasmas. Cada fragmento de espelho que o deformava parecia lhe trazer um pouco de lucidez. Ouvia, ou alucinava ouvir, os passos suaves do oriental pela casa. Ouviu quando a chave girava calmamente no buraco da fechadura horas antes. Sabia que faltava pouco. Sua vida e sangue escorriam pelos ralos que desenhava na própria pele com uma faca improvisada de espelho. Queria viver, queria morrer.

Num último ímpeto de raiva, juntou forças para cortar o próprio pescoço. Foi quando o oriental o impediu, agarrando sua mão, sorrindo.

Texto por: Filipe Tassoni (Amarelo Carmesim)

Imagem por: Filipe Tassoni (Amarelo Carmesim)

Revisão: Morrigan Ankh ( Pensando em RPG)


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